Segundo me disse um evangélico, a Igreja Católica defende que o termo “irmãos” de Jesus foi utilizado porque não havia nas línguas semitas (hebraico, aramaico) o termo “primo”. Mas, nas referências do N.T. sobre os irmãos de Cristo, a palavra grega que sempre é usada é adelfoV, adelphos (irmão), nunca se usou sungeneV, sungenes (parentes), ou anhyioV, anepsiós (primos), palavra esta que Paulo usou em Cl 4,10, e que foi traduzida corretamente como primo.
(Guilherme Viegas Reis – Belo Horizonte/MG.)
Um exame atento do contexto dos Evangelhos nos permite concluir que Jesus era filho único, apesar de algumas passagens mencionarem Tiago, José, Simão e Judas como “irmãos” de Jesus (Mc 6,3; Mt 13,55).
De fato, as línguas hebraica e aramaica não possuíam vocábulos próprios para definir diferentes graus de parentesco, como “primo”, “tio”, “sobrinho”. Todos esses parentes eram designados pela palavra “irmão”. Há numerosos textos do Antigo Testamento que o atestam, como por exemplo:
“Os filhos de Mooli eram: Eleazar e Cis. Eleazar morreu sem deixar filhos, mas teve filhas que foram desposadas pelos filhos de Cis, seus irmãos.” (1 Cr 23,21-22)
2Cr 36,9-10 diz que Nabucodonosor, rei da Babilônia, mandou prender e deportar o rei Joaquim, e constituiu Sedecias, seu irmão, como rei em seu lugar. Já em 2 Rs 24,17, Sedecias é apresentado como tio de Joaquim.
Embora Lot fosse sobrinho de Abraão (Gn 11,27-31), este lhe diz: “Somosirmãos” (Gn 13,8). Também Labão, sogro de Jacó, refere-se a ele como “seu irmão” (Gn 29,15), embora seja na verdade seu tio, irmão de sua mãe (Gn 27,43 e 29,10-11).
Há vários outros exemplos semelhantes a esses. Mas a inexistência de termos adequados não é o único, nem o principal motivo pelo qual os hebreus usavam a palavra “irmão” num sentido mais amplo. O verdadeiro motivo é cultural. A língua é sempre expressão de uma cultura e atende às suas necessidades: se as distinções entre os diversos graus de parentesco não eram previstas no vocabulário semita, é porque não eram consideradas importantes.
O conceito de família entre os israelitas era muito diferente do nosso, e bem mais amplo. Eram considerados “irmãos” todos aqueles que pertenciam a uma mesma linhagem familiar. Os descendentes de um antepassado comum, mesmo depois da segunda ou terceira geração, eram considerados seus “filhos” e, portanto, irmãos entre si. Até no tempo de Jesus, os israelitas ainda se diziam “Filhos de Abraão”, e Jesus foi chamado “filho de Davi”, por ser da descendência desse rei.
Os casamentos eram realizados, de preferência, dentro da mesma família. Por isso Abraão mandou um servo até sua terra natal, para buscar em sua família uma esposa para seu filho Isaac (Gn 24,3-4). Também Jacó desposou sua prima Raquel. No Cântico dos Cânticos, o pastor chama à sua amada: “Minha irmã, minha noiva” (Ct 4,9-10).
Por respeito a essa questão cultural é que, quando o Antigo Testamento foi traduzido para o grego, conservou-se a palavra “irmão”, embora a língua grega, mais complexa, possuísse termos próprios para “primo”, “tio” e “sobrinho”. Essa tradução destinava-se às comunidades israelitas que viviam em território grego, e elas mantinham seus conceitos culturais, mesmo usando uma outra língua. Para eles, a unidade familiar (o “clã”) importava mais do que o grau exato de parentesco. Usar “primo”, “tio” ou “parente” reduziria o sentido do parentesco a um laço meramente biológico, que não era o que os autores bíblicos tinham em mente. Para os hebreus, os laços que uniam suas famílias representavam muito mais do que isso: era algo que atingia o nível espiritual e ontológico, relacionando-se com seu senso de pertença ao povo eleito de Deus e às doze tribos que o compunham.
Em Cl 4,10, Paulo escrevia para uma comunidade grega e se referia a pessoas de origem grega, que não tinham o conceito cultural semita, por isso usou a palavra específica para “primo”, já que se referia mesmo ao parentesco biológico. Mas ele também usou, muitas vezes, a palavra “irmãos” no sentido amplo, quando se referia à comunidade dos cristãos, novo povo de Deus. Os próprios evangélicos costumam tratar-se dessa forma entre si...
Não é, portanto, no termo empregado que se fundamenta a convicção católica de que Jesus era filho único, mas sim no contexto geral dos Evangelhos, que apresentam vários indícios nesse sentido, como por exemplo:
- Lc 12,41-56 mostra Jesus aos 12 anos, acompanhando seus pais a Jerusalém, na festa da Páscoa, e sendo por eles perdido e procurado por 3 dias. Nada se fala sobre a presença de outras crianças com eles, e não é provável que fossem deixadas sozinhas em casa. Até os 12 anos, portanto, tudo indica que Jesus era filho único. Se os tais “irmãos” tivessem nascido depois disso, seriam ainda novos demais para o papel que desempenham nos evangelhos, durante o ministério público de Jesus.
- Embora se fale em “irmãos” de Jesus, em nenhuma passagem esses irmãos são apresentados como “filhos de Maria e José”. Ao contrário, Maria é sempre mencionada unicamente como mãe de Jesus, nunca como mãe de mais alguém. Nenhuma passagem diz, por exemplo: “Maria e seus filhos”. A Escritura sempre diz: “Maria, a mãe de Jesus, e os irmãos dele” (At 1,14). Essa distinção seria desnecessária e até estranha, se esses “irmãos” fossem também filhos dela.
- Em Jo 19,25-27, Jesus confia sua mãe à proteção do discípulo João. Isso leva a crer que, por essa altura, José já havia falecido. Segundo o costume judaico, porém, se Maria tivesse outros filhos, seria o mais velho destes quem deveria assumir o encargo de cuidar de sua mãe, após a morte de Jesus. Por que, então, Jesus a confia a João, que não era seu parente? E por que afirma que o filho dela, de agora em diante, será João?
Os irmãos de Jesus, mencionados no Evangelho, são na verdade seus primos, como podemos deduzir dos seguintes textos:
Mt 27,56 diz que, junto à cruz de Jesus, estavam presentes, entre outras mulheres, Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu. Nada indica que essa “Maria, mãe de Tiago e de José” pudesse ser também a mãe de Jesus. Se fosse, isso não deixaria de ser mencionado.
Jo 19,25 diz: “Junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, Mulher de Cléofas, e Maria Madalena.”
Atos 1,13 menciona, entre os discípulos, “Tiago, filho de Alfeu”. Sabe-se que os nomes “Cléofas” e “Alfeu” são traduções gregas do mesmo nome aramaico “Claphai”. Portanto, essa Maria, mulher de Cléofas e mãe de Tiago e de José, era outra Maria, parente da mãe de Jesus. Segundo um historiador antigo, era sua cunhada, pois Cléofas era provavelmente irmão de São José.
Pode-se ainda perguntar por que, no Evangelho, Maria aparece algumas vezes acompanhada pelos “irmãos de Jesus”. Isso se explica porque, segundo o costume judaico, as mulheres não podiam apresentar-se sozinhas em público, mas deviam ser sempre acompanhadas por parentes próximos do sexo masculino. Se José já havia falecido, e Jesus tinha saído de casa para cumprir sua missão, era natural que os primos de Jesus passassem a acompanhar sua tia.
Mas, além dos indícios bíblicos, a doutrina católica também se fundamenta na Tradição. Desde os mais remotos tempos, sempre houve na Igreja a convicção de que Jesus era filho único, convicção transmitida aos descendentes por aqueles que com ele conviveram. Não haveria razão para que se criasse essa tradição se não fosse verdadeira, já que o fato de ter irmãos seria algo muito natural, que em nada ofenderia a pessoa ou a missão de Jesus. O que não é natural é que, depois de quinze séculos, alguém comece a defender como verdade uma idéia completamente desconhecida na comunidade cristã até então, com base em termos que essa mesma comunidade cristã sempre conheceu e sempre interpretou diferentemente.
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